Gustavo Badaró - Direito à prova e os limites lógicos de sua admissão: os conceitos de pertinência e relevância - Ano 2016
Por: Gustavo BadaróSumário:
- 1. Introdução: prova e verdade - 2. Natureza do direito a prova - 3. Direito à prova e as regras de admissibilidade da prova - 4. Critérios lógicos de admissibilidade da prova – 5. O conceito de relevância e pertinência na doutrina brasileira – 6. O conceito de relevância e pertinência na doutrina estrangeira – 7. Sistemas probatórios: ideologia de inclusão ou exclusão probatória – 8. A título de conclusão: nossa posição sobre os conceitos de pertinência e relevância
1. Introdução: prova e verdade
O tema da verdade e a própria possibilidade epistêmica de atingi-la são demasiado amplos. Necessário, porém, estabelece alguns conceitos, ou melhor, concepções, com as quais se pretende trabalhar.
Sem ignorar os avanços do giro linguístico, principalmente o papel de intermediação entre a linguagem e a realidade, isso não autoriza que se rompa toda e qualquer conexão entre o conhecimento e a realidade. A realidade externa existe e constitui o padrão de medida, o critério de referência que determina a verdade ou a falsidade dos enunciados fáticos,1 no caso, da imputação penal ou da causa de pedir, no processo civil.
Embora se adote um conceito de verdade como correspondência, isso não significa que a relação entre prova e verdade adotada seja uma relação conceitual ou de identidade absoluta. Valemo-nos, nesse ponto, da explicação de Ferrer Beltrán, sobre como deve ser entendido o enunciado “p está provado”. Não significa nem que “p é verdadeiro”, o que seria uma relação conceitual, nem que “p foi estabelecido pelo juiz”. Neste último caso, sem dúvida o convencimento psicológico do juiz é uma condição necessária, mas não suficiente, à qual deve acrescentar-se a aplicação, na formação do convencimento do juiz, de critérios de racionalidade e regras da lógica.2 Assim sendo, o enunciado “p está provado” deve ser entendido como sinônimo de “há elementos de prova suficientes a favor de p”. Isso não quer dizer que a proposição, porque está provada, seja verdadeira. Uma hipótese fática pode resultar provada ainda que seja falsa.3 Assim sendo, afirmar que “p está provado” denota que este enunciado será verdadeiro quando se dispuser de elementos de prova suficientes a favor de p, e falso quando não se dispuser de elementos de prova a favor de p ou quando eles forem insuficientes. 4 Todavia, isso não exclui que o enunciado possa ser considerado verdadeiro, porque confirmado por suficientes elementos de prova, embora não corresponda, efetivamente, à realidade dos fatos.
Mesmo adotando uma premissa epistemológica que aceita um conceito de verdade como correspondência, é preciso ter a plena consciência de que uma identidade absoluta é inatingível. Mas, ainda que não possamos saber, com absoluta certeza, quando um enunciado fático é verdadeiro, podemos saber quando, com base em uma probabilidade lógica prevalecente, um enunciado é preferível ao outro.5
E, assim sendo, não se concebe um modelo justo de processo, em especial de natureza punitiva ou sancionatória, que não trabalhe com a verdade – ainda que inatingível – como fator de legitimação de seu resultado e critério de justiça.
Com afirma Ferrajoli, “se uma justiça penal inteiramente ‘como verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal inteiramente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbítrio.6 Justiça e verdade são, portanto, noções complementares ao exercício do poder.7 Isso não significa, como erroneamente afirmam muitos, que o acertamento da verdade é o fim último do processo, em especial, do penal. A verdade é apenas um pressuposto para poder adequadamente decidir qual é a hipótese legal aplicável ao caso concreto.8
Mas, mesmo com essa redução de importância, se a verdade fosse indiferente para a justiça, a atividade probatória seria uma grande inutilidade,9 sendo melhor decidir o processo lançando os dados, com fazia o juiz Bridoye, protagonista de um dos episódios de Pantagruel,10 em que o velho magistrado confessa, perante a Corte Suprema, que sempre decidia as sentenças pela sorte nos dados e, por mais de quarenta anos, assim agiu sem jamais ter qualquer sentença considerada equivocada, a não ser na última, que por isso mesmo foi objeto de apelação. E, mesmo assim, o juiz Bidoyer, que já estava velho, atribui o erro não aos dados ou à sorte, mas o fato de que já não enxergava bem e podia ter errado ao tentar distinguir os números dos dados, tendo tomado um quatro por um cinco e, por isso, ter sentenciado errado.
Baseado em tais premissas é que se analisará o tema da prova e seus limites lógicos.