2022
O RE 1.235.340/SC do STF e o voto do Ministro Roberto Barroso, a presunção de inocência e a soberania dos vereditos: não há nada a sopesar!
Gustavo Badaró¹*No item 19 de seu voto, o Min. Luiz Roberto Barroso afirma que: “consiste em saber se a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução da condenação imposta pelo Conselho de Sentença”. E, para tanto, vale-se da ponderação de princípios. Lê-se no item 32 do voto: “A presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”. No caso, colidiria com o “princípio” da soberania dos vereditos.
Discordo. Não há o que sopesar, pois o conteúdo de cada uma delas não colide!
A soberania dos veredictos significa que cabe aos jurados dar a última palavra sobre a existência do crime, em todos os seus elementos, e sobre a autoria delitiva. Consequentemente, se o Tribunal de Justiça divergir dos jurados, não poderá alterar a decisão soberana do conselho de sentença, limitando-se a cassar o julgamento do júri (CPP, art. 593, § 3.º), submetendo o acusado a novo julgamento. Se o tribunal pudesse reformar o julgamento do conselho de sentença, o júri deixaria de ser soberano. Com o “juízo de cassação, a soberania continua a existir, mas desaparece a onipotência arbitrária”, como dizia Frederico Marquês (Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965. v. 4, n. 1073, p. 239).
Aliás, diga-se de passagem, o que é um “princípio” e que poderia ser sopesado é o direito ao julgamento pelo tribunal do júri. A soberania dos veredictos é uma a característica institucional do tribunal do júri, mas não um “princípio”, ou “direito prima facie”. Não se trata de mandamento de otimização, que poderá ser satisfeito em graus variados. Nem a medida de sua satisfação dependerá das possibilidades fáticas e das possibilidades jurídicas existentes na máxima medida do possível, em vista do outro direito em confronto. Se a soberania fosse um princípio passível de satisfação gradual, seria possível falar em “soberania relativa” ou “soberania incompleta”, o que seriam contradições em termos.
Já a presunção de inocência, no que toca à execução antecipada da pena, não diz respeito à presunção de inocência enquanto regra probatória, consubstanciada no in dubio pro reo, mas sim a presunção de inocência na sua faceta de regra de tratamento dos acusados. O legislador ou o juiz não pode tratar quem ainda é presumido inocente, mesmo que já condenado por sentença recorrida, como se culpado fosse, o que inclui dar eficácia imediata ao comando sancionador da sentença e permitir a execução provisória da pena.
Logo, não é preciso “sopesar” a soberania dos vereditos com a presunção de inocência, pois não há colidência entre eles. A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado, que não pode tratado como se fosse culpado antes do trânsito em julgado da condenação penal – o que inclui a execução provisória da pena – não colide com a soberania dos vereditos, enquanto atributo dos jurados de dar a última palavra sobre os temas que são de sua competência na sentença subjetivamente complexa do júri, não podendo ser substituídos, em suas decisões, por um magistrado togado.
Em tese, seria possível ter júri sem soberania e com execução imediata de suas condenações, como no regime originário do CPP. Ou júri com soberania, e sem execução imediata das condenações, como ocorria até o advento da Lei 13.964/2019. Também é possível ter sentenças de juiz togado, sem soberania, em com execução imediata, como era o regime do CPP, até a revogação do art. 393, inciso I. Ou, diversamente, a sentença pode ser executável somente após o trânsito em julgado, com se tem no presente momento, por força do art. 5, LVII, da CR. São, pois, variáveis independentes, não havendo necessidade de restrição de uma para a satisfação da outra. Soberania dos vereditos trata do poder do Tribunal de Justiça em face da decisão do Tribunal do Júri. Presunção de inocência impõe que os recursos contra decisões condenatórias tenham efeito suspensivo.
Por fim, algumas palavras sobre o perigo das estatísticas para fundamentar restrições de direitos fundamentais, pois o voto lança mão do argumento do “inexpressivo percentual de modificação das decisões condenatórias do Júri” (item 27 do voto).
O voto desenvolve o seguinte argumento estatístico: “de todas as decisões proferidas pelo Júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do Tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do Júri”. Isso significa, em grandes números, que para o Ministro Roberto Barroso não há problemas de, em a cada 100 pessoas, 2 duas delas ter a sua liberdade irreparavelmente lesada.
O baixo número de recursos admitidos contra as decisões do tribunal do júri e, principalmente, de seu provimento, no caso de recursos da defesa por ser a decisão do júri manifestamente contrária à prova dos autos, decorre exatamente de uma má compreensão da soberania dos vereditos, fazendo com que ela indevidamente afaste a presunção de inocência, enquanto regra de julgamento do in dubio pro reo. Foi o que procurei expor no artigo: O recurso contra a sentença do Tribunal do Júri manifestamente contrária à prova dos autos: compatibilização da soberania dos veredictos com a presunção de inocência, In: MADEIRA, Guilherme, BADARÓ, Gustavo; Rogério Schietti (Coord), Código de Processo Penal: Estudos comemorativos aos 80 anos de vigência. São Paulo: RT, 2021, t. II, p. 677-696. Mas isso é outro assunto.
Voltemos às estatísticas. Dois exemplos são suficientes para demonstrar a sua inadequação.
O primeiro: no ano de 2021 tramitaram 94 feitos no STF, entre ações penais e inquéritos, relativos a casos de foro por prerrogativa de função. No mesmo ano, tramitaram 7,8 milhões de processos criminais no Brasil. Logo, os casos de foro por prerrogativa de função, no total de processos penais brasileiros, é muito inferior a 1,97%. Aproximadamente 0,00001%. Creio que os Ministros concordarão que, nem por isso, devemos acabar com o foro por prerrogativa de função, inclusive para Ministros do STF.
Outro exemplo: segundo a OMS, as doenças raras são aquelas que afetam até 65 pessoas, para cada 100 mil indivíduos. Ou seja, 0,065% da população. Assim, considerando os escassos recursos para a saúde pública, o Estado brasileiro deveria deixar de os investir na prevenção e tratamento de tais doenças que beneficiam uma ínfima parcela da população?
A estatística é um mau argumento, quando se trata de restringir direitos fundamentais. Até porque, os direitos fundamentais, exatamente por esse caráter, devem estar a salvo, até mesmo da vontade das maiorias momentâneas. Isso é Estado Democrático de Direito.
Discordo. Não há o que sopesar, pois o conteúdo de cada uma delas não colide!
A soberania dos veredictos significa que cabe aos jurados dar a última palavra sobre a existência do crime, em todos os seus elementos, e sobre a autoria delitiva. Consequentemente, se o Tribunal de Justiça divergir dos jurados, não poderá alterar a decisão soberana do conselho de sentença, limitando-se a cassar o julgamento do júri (CPP, art. 593, § 3.º), submetendo o acusado a novo julgamento. Se o tribunal pudesse reformar o julgamento do conselho de sentença, o júri deixaria de ser soberano. Com o “juízo de cassação, a soberania continua a existir, mas desaparece a onipotência arbitrária”, como dizia Frederico Marquês (Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1965. v. 4, n. 1073, p. 239).
Aliás, diga-se de passagem, o que é um “princípio” e que poderia ser sopesado é o direito ao julgamento pelo tribunal do júri. A soberania dos veredictos é uma a característica institucional do tribunal do júri, mas não um “princípio”, ou “direito prima facie”. Não se trata de mandamento de otimização, que poderá ser satisfeito em graus variados. Nem a medida de sua satisfação dependerá das possibilidades fáticas e das possibilidades jurídicas existentes na máxima medida do possível, em vista do outro direito em confronto. Se a soberania fosse um princípio passível de satisfação gradual, seria possível falar em “soberania relativa” ou “soberania incompleta”, o que seriam contradições em termos.
Já a presunção de inocência, no que toca à execução antecipada da pena, não diz respeito à presunção de inocência enquanto regra probatória, consubstanciada no in dubio pro reo, mas sim a presunção de inocência na sua faceta de regra de tratamento dos acusados. O legislador ou o juiz não pode tratar quem ainda é presumido inocente, mesmo que já condenado por sentença recorrida, como se culpado fosse, o que inclui dar eficácia imediata ao comando sancionador da sentença e permitir a execução provisória da pena.
Logo, não é preciso “sopesar” a soberania dos vereditos com a presunção de inocência, pois não há colidência entre eles. A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado, que não pode tratado como se fosse culpado antes do trânsito em julgado da condenação penal – o que inclui a execução provisória da pena – não colide com a soberania dos vereditos, enquanto atributo dos jurados de dar a última palavra sobre os temas que são de sua competência na sentença subjetivamente complexa do júri, não podendo ser substituídos, em suas decisões, por um magistrado togado.
Em tese, seria possível ter júri sem soberania e com execução imediata de suas condenações, como no regime originário do CPP. Ou júri com soberania, e sem execução imediata das condenações, como ocorria até o advento da Lei 13.964/2019. Também é possível ter sentenças de juiz togado, sem soberania, em com execução imediata, como era o regime do CPP, até a revogação do art. 393, inciso I. Ou, diversamente, a sentença pode ser executável somente após o trânsito em julgado, com se tem no presente momento, por força do art. 5, LVII, da CR. São, pois, variáveis independentes, não havendo necessidade de restrição de uma para a satisfação da outra. Soberania dos vereditos trata do poder do Tribunal de Justiça em face da decisão do Tribunal do Júri. Presunção de inocência impõe que os recursos contra decisões condenatórias tenham efeito suspensivo.
Por fim, algumas palavras sobre o perigo das estatísticas para fundamentar restrições de direitos fundamentais, pois o voto lança mão do argumento do “inexpressivo percentual de modificação das decisões condenatórias do Júri” (item 27 do voto).
O voto desenvolve o seguinte argumento estatístico: “de todas as decisões proferidas pelo Júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do Tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do Júri”. Isso significa, em grandes números, que para o Ministro Roberto Barroso não há problemas de, em a cada 100 pessoas, 2 duas delas ter a sua liberdade irreparavelmente lesada.
O baixo número de recursos admitidos contra as decisões do tribunal do júri e, principalmente, de seu provimento, no caso de recursos da defesa por ser a decisão do júri manifestamente contrária à prova dos autos, decorre exatamente de uma má compreensão da soberania dos vereditos, fazendo com que ela indevidamente afaste a presunção de inocência, enquanto regra de julgamento do in dubio pro reo. Foi o que procurei expor no artigo: O recurso contra a sentença do Tribunal do Júri manifestamente contrária à prova dos autos: compatibilização da soberania dos veredictos com a presunção de inocência, In: MADEIRA, Guilherme, BADARÓ, Gustavo; Rogério Schietti (Coord), Código de Processo Penal: Estudos comemorativos aos 80 anos de vigência. São Paulo: RT, 2021, t. II, p. 677-696. Mas isso é outro assunto.
Voltemos às estatísticas. Dois exemplos são suficientes para demonstrar a sua inadequação.
O primeiro: no ano de 2021 tramitaram 94 feitos no STF, entre ações penais e inquéritos, relativos a casos de foro por prerrogativa de função. No mesmo ano, tramitaram 7,8 milhões de processos criminais no Brasil. Logo, os casos de foro por prerrogativa de função, no total de processos penais brasileiros, é muito inferior a 1,97%. Aproximadamente 0,00001%. Creio que os Ministros concordarão que, nem por isso, devemos acabar com o foro por prerrogativa de função, inclusive para Ministros do STF.
Outro exemplo: segundo a OMS, as doenças raras são aquelas que afetam até 65 pessoas, para cada 100 mil indivíduos. Ou seja, 0,065% da população. Assim, considerando os escassos recursos para a saúde pública, o Estado brasileiro deveria deixar de os investir na prevenção e tratamento de tais doenças que beneficiam uma ínfima parcela da população?
A estatística é um mau argumento, quando se trata de restringir direitos fundamentais. Até porque, os direitos fundamentais, exatamente por esse caráter, devem estar a salvo, até mesmo da vontade das maiorias momentâneas. Isso é Estado Democrático de Direito.
¹* Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da USP. Advogado Criminalista e Consultor Jurídico.