Gustavo Badaró - Correlação entre acusação e sentença: releitura da emendatio libelli à luz do contraditório sobre as questões de direito, no novo Código de Processo Civil - Ano 2016
Por: Gustavo BadaróÁREA DO DIREITO: Processo penal
RESUMO: O artigo tem por objeto analisar a influência no novo Código de Processo Civil, em especial, o seu art. 10, que estabelece a necessidade do contraditório sobre as questões de direito, trará no processo penal, em especial, sobre a regra do art. 383 do Código de Processo Penal. Se no processo civil, o juiz não pode decidir sobre fundamento que não tenha sido debatido pelas partes, sem lhes dar prévia oportunidade para sobre ele se manifestar, é necessário verificar se é possível continuar afirmando que, no processo penal, o acusado se defende dos fatos, e não de sua qualificação jurídica. Pretende-se demonstrar que a nova regra processual civil tem incidência sobre o processo penal, de modo que o juiz, na sentença, para poder condenar o acusado com base nos mesmos fatos, mas subsumidos num tipo penal diverso, terá que dar prévia oportunidade para as partes exercerem o contraditório, manifestando-se sobre tal fundamento.
PALAVRAS-CHAVE: emendatio libelli – contraditório – qualificação jurídica
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Princípio do contraditório – 2.1 Contraditório sobre questões de direito; 2.2 O contraditório no novo Código de Processo Civil – 3. Da emendatio libelli no processo penal – 4. Diversa definição jurídica dos fatos e contraditório sobre as questões de direito – 5. Diversa definição jurídica dos fatos no direito comparado – 6. Diversa definição jurídica dos fatos na Convenção Americana de Direitos Humanos e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – 6. Conclusão.
1. Introdução
Os princípios têm força irradiadora, significando muito mais do que meras normas programáticas. Assim sendo, quando um princípio se corporifica em uma garantia processual, como é o caso do contraditório, é necessário observá-lo, na plenitude de sua potencialidade, pois a observância das garantias, além de fator de proteção do acusado, é também um selo de legitimação do resultado final do processo.
Assim, nos casos em que a legislação não for suficiente para assegurar o devido processo, os princípios constitucionais suprirão a lacuna. Quando o Código de Processo Penal colidir com a Constituição, esta deverá prevalecer. E, se não houver omissão ou colidência, mesmo assim os princípios processuais poderão impor uma releitura ou trazer novo conteúdo a um dispositivo da legislação infraconstitucional. É necessário “revisitar” o nosso sistema processual penal.1
Partindo dessa postura e procurando integrar a garantia do contraditório, em especial sobre as questões de direito, com a chamada emendatio libelli, há quase quase vinte anos, uma das conclusões apresentada na minha dissertação de mestrado foi: “na hipótese diversa, em que o fato permanece inalterado, devendo ser diversa sua qualificação jurídica, embora não seja necessário o aditamento da peça acusatória, em respeito ao princípio do contraditório, que também se aplica às questões de direito, o juiz deverá convidar as partes a se manifestarem sobre a possibilidade de uma diversa definição jurídica dos fatos imputados, evitando surpresas às partes, principalmente em face da relevância que o tipo penal assume para o direcionamento da defesa. O art. 383 do Código de Processo Penal pode continuar sendo aplicado integralmente, mas em respeito ao art. 5o , inc. LV da Magna Carta, antes de aplicar tal dispositivo, o juiz deve observar o contraditório sobre as questões de direito.”2
Mas não foi suficiente ler o Código de Processo Penal à luz da Constituição. E a garantia do contraditório não bastou. O contraditório sobre as questões de direito sempre foi solenemente ignorado pela jurisprudência processual penal, que permitia ao juiz, na sentença, dar ao fato uma definição jurídica diversa, mesmo que sobre ela a defesa não tivesse se manifestado, pois se justificava: “o réu se defende dos fatos, e não da definição jurídica”.
Agora, contudo, o novo Código de Processo Civil, proclama: “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. O presente artigo procura explorar a repercussão que tal dispositivo pode ter no processo penal.